Acontece infelizmente que, em certos países menos desenvolvidos, as mudanças de governo, sobretudo quando resultam da mudança dos partidos na sede do poder, correspondem à mudança de um grande número de funcionários. Ora, para além de se tratar de uma situação que, por si, lesa as normas de uma boa conduta por parte de quem governa, tal procedimento introduz a mais ignominiosa perversão que se pode imaginar dentro do próprio Estado. É que os funcionários, os seus familiares e todos os que deles podem receber algum benefício, quando são convocados para as eleições, vão dar o seu voto não às pessoas que lhes parecem mais competentes mas sim àquelas que lhes podem garantir a permanência no emprego e, com ele, o ganha-pão para toda a família, uma vez que a escolha de outra formação política iria conduzir previsivelmente ao afastamento dos seus lugares, para os facultar aos apaniguados dos novos governantes e aos militantes das formações políticas de que os novos governantes são provenientes. Deste modo se torna impossível a verdadeira democracia, ficando aberto o caminho ao monstro da arbitrariedade.
5. Encruzilhadas da tirania
Encruzilhadas da tirania
Em nome da eficiência, os governantes reclamam com
frequência o direito de se rodearem de pessoas da sua confiança pessoal e de só
a essas confiarem as tarefas principais da administração.
Perante essa reivindicação, de imediato se levantam
sérios problemas:
– o primeiro, ainda que à primeira vista não o
pareça, é o de saber o que se entende por “confiança pessoal”; se essa
confiança tem a ver com as capacidades técnicas, intelectuais e executivas ou
se antes tem a ver com o facto de perfilharem ou não o mesmo credo político;
– o segundo, é a constatação do perigo real de que
a confiança baseada na profissão do mesmo credo político passe para segundo
plano ou até que menospreze a exigência de competência técnica, na área sobre a
qual a pessoa escolhida vai ter responsabilidades;
– o terceiro consiste em saber o que se entende por
“político”, sendo verdade que na prática – e os exemplos abundam – se corre o
risco de considerar a “confiança política” como um sinónimo de “confiança
partidária”, entendido o “partidário” no sentido de uma militância, com a
inscrição prévia num partido e a participação na respectiva actividade, quer
através de acções destinadas à formação interna, quer em acções destinadas a
exercer influência sobre a opinião pública.
E, a entender-se a “confiança política” como
referida à militância partidária, outro problema se levanta, que é o de saber
como se mede essa militância, isto é, como se verifica o momento a partir do
qual ela existe e se justifica: pela simples inscrição nos registos de um
partido, pelo tempo decorrido desde essa inscrição, pela fidelidade aos ideais
programáticos do partido, pelo trabalho realizado ao serviço desses ideais,
pela intensidade da própria actividade de militância…
Põe-se a questão de saber em que medida podem se
objecto de confiança política os cidadãos que, inscritos como militantes de um
partido, depois se transferiram para outro, sendo verdade que essa transferência
depende muitas vezes da conjuntura e quase sempre há sérias razões para duvidar
se essa mudança corresponde à seriedade das convicções ou se é resultado do
mero oportunismo carreirista, cujo objectivo é apenas o de manter ou de
conseguir lugares e benefícios. O problema é tanto mais grave quanto essas
transferências acontecem nas vésperas e a pouco tempo de previsíveis alterações
do panorama político ou pouco tempo depois de essas alterações se terem
consumado. A intempestiva transferência da inscrição num partido político para
outro, ou uma atitude equivalente, deverá, pelo contrário, encarar-se como
razão bastante para se levantarem sérias dúvidas em relação à confiança política, e não só política
(também moral), que um cidadão merece.
Em face destes problemas, convém fazer algumas
observações:
– a confiança política não deve confundir-se com
confiança partidária, isto é, não corresponde ao alinhamento por um determinado
partido político e muito menos o comprometimento positivo em acções de
militância partidária;
– a confiança política não pode também ser confundida
com a confiança ou a simpatia pessoal do dirigente ou superior hierárquico;
– a confiança política deve basear-se na convicção
de que o cidadão investido nalgum cargo assume como próprio o compromisso de
concretizar um determinado projecto, não pelas vantagens específicas que pode
carrear para o partido, mas pelo interesse para o conjunto dos cidadãos: a
partir do momento em que uma formação proposta por um partido político assume o
poder, não governa (ou não deve governar) para satisfazer os interesses do partido mas para conseguir
o bem de toda a comunidade.
O cidadão proposto para o exercício de um cargo
deve ter plena consciência de que não o é para pôr em prática um projecto de
afirmação própria, quer pessoal quer dos seus superiores, ou a concretização de
um programa com que simpatizara anteriormente, mas sim para dar execução a um
programa que foi amplamente sufragado.
A certeza de que está empenhado na concretização de
um determinado programa, não significa que o cidadão esteja dispensado de
possuir a necessária competência técnica e legal para o levar à prática.
Por outro lado, não se podem arrumar na prateleira,
de ânimo leve, pessoas dotadas de reconhecida competência e até com experiência
de trabalho na mesma área, só porque não estão inscritos nem são militantes no
mesmo partido – por vezes, assumindo-se verdadeiramente como independentes –
embora tivessem posto todo o esmero na execução de tarefas que lhe foram
cometidas. Muito mais grave será excluir as pessoas pelo simples facto de que
em momentos anteriores deram o melhor de si para desempenhar cabalmente as
funções em que estavam investidas, sem olhar ao credo partidário dos
responsáveis, a que então serviam, como agora estariam dispostos a fazer, sob a
dependência de governantes eleitos por outra formação política. Penalizar essas
pessoas é o mesmo que penalizar o cumprimento do dever, a nobreza de carácter,
a lealdade e todos os bons princípios.
2002.04.25