O génio do Alto Minho


Se tem validade o axioma do filósofo "Cogito, ergo sum" ­penso, logo existo - e se o pensamento se exige necessariamen­te como alicerce de qualquer digna forma de viver, que fundamentalmente requer uma maneira de "ver" ou de encarar a vida, e portanto, de pensar, o Alto Minho existe... como realidade cultural.
Se em dado momento for adversa a vontade dos homens, poderá o Alto Minho não sobreviver como espaço administrativo ou podem as fronteiras do Alto Minho espiritual não coincidir com os limites da circunscrição. Até porque não há fronteiras espirituais e a esse nível as realidades se definem não a partir de precisos contornos externos, mas de um núcleo de irradiação, cujo aro de influência se alarga conforme o poder da energia interna, até se esbater em horizontes mais ou menos abertos e longínquos...
Que este núcleo se formou através dos tempos, em resulta­do da convergência de forças múltiplas - eis outra verdade.
Não era necessário que as mais recentes descobertas dos arqueólogos viessem provar não ser de todo infundada a tradição estereotipada nos velhos alfarrábios de que o Alto Minho (com a sua periferia) teria sido já em esquecidos tempos destino preferencial de algumas migrações mediterrânicas: túrdulos, gregos... Nem urge chamá-los a testemunho sobre a especial incidência dos fenómenos dolménico ou castrejo, porque tudo isso é válido para uma área geográfica muito mais vasta.
É sobretudo verdade que, desde a Idade Média, o Alto Minho - um espaço geográfico sem contornos taxativos mas situado a norte do Rio Cávado - constitui uma área onde os homens viveram corajosamente as suas diferenças, em relação aos outros, assumindo uma indiscutível identidade colectiva.
Situados numa zona de passagem entre dois reinos, os alto minhotos desempenharam-se do encargo de a defender, recebendo ao longo dos séc. XII e XIII a organização administrativa própria dos municípios de fronteira. Constituindo eclesiasticamente a metade sul da diocese de Tui, tornaram-se autónomos, quando em fins do séc. XIV se pôs em risco a identidade nacional, embora a diocese apenas fosse criada no século XV, englobando outras áreas periféricas (Ceuta. Olivença...), e depois entrasse em letargia até ao século XX.
Quando em l580 se anexa o reino à Espanha, é no Alto Minho onde a chama da independência mais tempo se mantém viva, à roda do fracassado rei D. António. E talvez ninguém, a seguir a l640, tenha lutado tanto como os alto minhotos, jogando a fortuna e o sangue, para consolidar a restauração...
São apenas exemplos...
Mas o que sucedeu no domínio dos eventos traduziu-se muito mais a nível das tradições e das artes populares. Inconfundível é essa, isto é, a alto minhota maneira de viver o quotidiano e a festa, de cozinhar, de vestir, e de criar objectos.
Os cantares e danças regionais são incomparáveis e afanam-se em vão os etnó]ogos made in qualquer universidade estrangeira, para neles descortinar preconceituadas semelhan­ças com bailes ou cerimónias palacianas que encontram noutras terras. É inviável aplicar o figurino externo. Aqui as próprias danças traduzem a liberdade interior e a harmonia comunitária, não menos que o indiscutível refinamento do gosto.
As artes populares testemunham um extraordinário equilí­brio entre as mais arcaicas tradições decorativas e as aquisições mais próximas dos meios cultos dos últimos séculos. As composições geométricas do mundo ancestral combinam-se com ornamentos herdados do mundo mais erudito. 
O mais importante, no entanto, é a mestria consumada com que os artistas saídos do povo caldeiam todas essas influências em produtos inteiramente originais, a qual se transformou em verdadeiro apanágio regional. Trajes à lavradeira não os há com tanta beleza e tão distintos de todos os outros como os do Alto Minho. Some-se a arte de decorar, por exemplo, os jugos e as espadelas. E lembrem-se, para concluir, as inconfundíveis faianças de Viana, que constituíram uma das nossas glórias.
Leiam-se os escritores e digam-me se nada há de comum entre poetas como Martim Soares, Agostinho da Cruz, Diogo Bernardes, António Feijó, Pedro Homem de Melo... apesar da inegável originalidade de cada um deles.
A servir de fundo a tudo isto, e a muito mais - porque não? - está uma realidade espiritual: o génio do povo que vive e trabalha no extremo noroeste de Portugal...


António Matos Reis